Família é tudo!
Epílogo
Como isto pôde acontecer?
Em 1990, recebi uma visita que mexeu comigo. A presidente de uma associação que militava pela morte dos recém-nascidos com deficiência grave desejava me ver. Muito curiosa e impressionada por essa solicitação, pedi a Pierre Caubel, colaborador voluntário para a comunicação e redação de Ombres et Lumière, se poderia estar presente à entrevista. Ele, general da reserva da Aeronáutica, e sua esposa Suzon tinham uma filhinha, Marie, com doença renal muito rara. Além disto, adotaram Jérôme, com deficiência muito profunda, que progrediu bastante depois de sua chegada à família, que já tinha sete crianças.
Nossa interlocutora apresentou-se. Era mãe de Michel, um rapaz de vinte anos com deficiência mental e problemas psiquiátricos. Ela fez um relato violento e patético da sua vida impossível: abandono de seu marido, fuga das pessoas mais íntimas, hostilidade de vizinhança, por causa dos gritos de seu filho dia e noite, carreira profissional arrasada pelas faltas constantes,… Terminou com um clamor de desespero: “Não acham que é um crime deixar um filho como o meu viver?” A resposta de Pierre, inspirada, foi a seguinte: “O crime, senhora, foi a terem deixado totalmente sozinha nessa provação.” Grande silêncio. Toda agressividade caiu, como a libertação de um peso colossal. Não a tínhamos julgado nem condenado, mas apenas a compreendido. Suavemente, ela falou: “Sim, é verdade, me deixaram sozinha com Michel.”
Conseguimos, então, começar a falar, inclusive de Fé e Luz. Ela ouvia, surpresa e boquiaberta. De vez em quando, fazia alguma pergunta. Depois, murmurou por duas vezes: “como isto pôde acontecer?” Apesar de nosso convite para manter-se em contato, nunca mais a vimos, porém nem Pierre nem eu a esquecemos.
Ela tinha revelado em nós dois sentimentos. Primeiro, uma grande compaixão por Michel, por ela e todos os pais que vivem situações intoleráveis com seus filhos. Sua narrativa lembrava-nos os desafios monumentais que as condições de vidas das pessoas com deficiência apresentam ao mundo.
Em diversos países, muitas pessoas com deficiência são sempre tidas como ‘loucas’, às vezes trancadas em instituições lotadas nas quais a violência é inevitável. Outras são escondidas por suas famílias, vistas com vergonha, como uma maldição. Outras ainda perambulam pelas ruas, principalmente nos países onde impera a pobreza ou a miséria, e onde a maioria da população tem falta de tudo, de alimento, casa, roupas e remédios.
Em outros países ditos ‘desenvolvidos’, reconhece-se o valor da pessoa com deficiência. As leis prometem-lhe igualdade de direitos e oportunidades, participação e cidadania, exigem sua integração, direito à autonomia e independência. Imensos progressos aconteceram em matéria de ajuda financeira. Mas, ao mesmo tempo, nesses mesmos países (assim como em outros), autoriza-se, e até mesmo encoraja-se, o aborto da criança com deficiência antes do nascimento. O diagnóstico pré-natal torna-se sistemático e visa, frequentemente, impedir que nasça uma criança que não é como se desejava ou, simplesmente, como todo mundo.
O foco colocado na autonomia e independência, mesmo que estas sejam importantes, parece ignorar a necessidade essencial das pessoas com deficiência de amar e serem amadas, de viver a alegria de ter um local comunitário onde se encoraje a vida espiritual autêntica, a amizade e a fidelidade, ao invés de relações superficiais e sem futuro; onde também se descubra a felicidade de se doar e de servir, para o bem comum.
Ao mesmo tempo, a admiração da mãe de Michel diante de Fé e Luz nos fez sentir, com nova intensidade, como a obra de Deus através dos pequeninos é surpreendente. “É impossível! Como isto pôde acontecer?” Como as pessoas mais feridas puderam reunir em Lourdes uma multidão imensa e fazer dela uma família? Como a deficiência e a doença, consideradas objetivamente como uma infelicidade – e até como maldição – puderam transformar-se em caminho de amor e até de alegria?
Qual é, então, esse grande mistério da pessoa com deficiência intelectual ao qual somos chamados a entrar?
Ele nos é, em parte, revelado pelo Evangelho. Mas somente em parte, pois é só no Céu que poderemos compreendê-lo em plenitude. Deus, que escolheu o fraco para confundir os fortes, esconde esses mistérios dos sábios e dos intelectuais e revela-os aos bem pequeninos. Ele nos dá a felicidade quando convidamos os pobres, as pessoas com deficiência, para nossas refeições e nossas festas. Jesus chega ao ponto de se identificar com eles: “Tudo que fizerem a um desses pequeninos é a mim que o fazeis”. Jesus, impotente na cruz, se revela na criança que não pode se mexer, e cujo sofrimento não podemos aliviar.
Assim, quando ajudamos a pessoa com deficiência a caminhar e a comer, quando a visitamos, quando a olhamos com ternura, é Jesus que ajudamos, que visitamos e que olhamos com ternura. Ali está Ele, tão presente quanto está na Eucaristia. Ali está Ele, presente na criança mais perturbadora, que pode fazer brotar instantes de inesperada alegria.
É por isso que o cântico de ação de graças de Fé e Luz sobe a Deus, pois Ele nos chamou a caminhar juntos com os mais próximos de seu coração. Com Maria, adoramos repetir o Magnificat:
“Ele retira os poderosos de seu trono, Ele eleva os humildes, Ele enche de bens os famintos”
Oito de setembro de 2011, Festa da Natividade Da Virgem Maria